Opinião

Entranhas de Misericórdia

Imediatamente antes do Natal do Senhor, a liturgia da Igreja prevê a leitura do Evangelho do cântico profético do Benedictus (Lc 1,67-79), passagem na qual o Espírito Santo, pela boca de Zacarias, anuncia a misericórdia salvífica de Deus para com os pecadores, ao predizer que “graças ao coração misericordioso do nosso Deus” nos visitará o Messias, o astro das alturas e rebento do trono de Davi, para iluminar e “guiar nossos passos no caminho da paz” (Lc 1,78-79). Estamos, assim, diante de uma máxima revelação evangélica, ao mesmo tempo para a história e para a economia da salvação, acerca da “entranhada” misericórdia divina que nos redime em Jesus Cristo. Com efeito, as opções de tradução do versículo 78 oscilam entre as expressões “coração misericordioso” e “entranhas de misericórdia”, como, por exemplo, na Bíblia de Jerusalém e na nova edição da Bíblia da CNBB, respectivamente.
Dom Domenico Cancian esclarece: “Isso se torna realidade [a experiência da salvação] ‘graças ao misericordioso coração (em grego dià splánchna eléous, pelas entranhas da misericórdia) do nosso Deus, pelo qual (literalmente naquelas entranhas) nos visita o astro das alturas’ (Lc 1,78). No perdão dos pecados, conhecemos as entranhas de misericórdia de nosso Deus, descobrimos o amor entranhado de Deus” (“O evangelho da misericórdia”: in Misericórdia. Face de Deus e da nova humanidade, p. 67, Paulinas, São Paulo, 2006).
No vocabulário neotestamentário, são três os termos gregos que, principalmente, denotam a ideia de “misericórdia”: primeiro, éleos; depois, oiktirmós, a misericórdia que se torna compaixão; por fim (já englobando o terceiro termo), “os cristãos deveriam ‘revestir-se de entranhas de compaixão’ (splanchna oiktirmoú) (Cl 3,12), deveriam ter ‘sentimentos de amor e de compaixão’ (splánchna kaì oiktirmói) (Fl 2,1)” (op. cit., p.41); como diz o autor, “experimentar comoção visceral, misericórdia e ternura” (p.42), isto é, a mesma “comoção das entranhas” experimentada por Jesus (cf. Lc 7,13).
E o “lugar” por excelência para haurirmos esse conhecimento é o “hoje” da liturgia, “a primeira e necessária fonte do espírito autenticamente cristão” (Concílio Vaticano II, Optatam Totius 16). Isso porque o curso anual da liturgia “‘goza de força sacramental e especial eficácia para alimentar a vida cristã’ [...] Portanto, é com razão que, ao celebrar o ‘sacramento do Natal do Cristo’ e sua manifestação ao mundo, pedimos que, ‘reconhecendo sua humanidade semelhante à nossa, sejamos interiormente transformados por Ele’ [...] Pois, para usarmos as palavras do Concílio Ecumênico Vaticano II, ‘celebrando os mistérios da Redenção, a Igreja abre aos fiéis as riquezas do poder e dos méritos de seu Senhor; de tal modo que os fiéis entram em contato com esses mistérios, tornados de certa forma presentes em todo o tempo e lugar, e se tornam repletos da graça da salvação” (São Paulo VI, Mysterii Paschalis, 1969). 
A profecia de Zacarias e a celebração litúrgica do Natal devem abrir-nos, agora num outro sentido, a uma profecia cultural da misericórdia, a qual exige a conversão pastoral até uma Igreja samaritana e “em saída”, capaz de sentir compaixão em suas entranhas pela humanidade ferida. Só a força profética da misericórdia pode representar um sinal de esperança na medida em que está ordenada à paz. O Amor misericordioso, no mistério – e na lógica – da Encarnação, é o modelo da evangelização da cultura, que vai no sentido de “recapitular todas as coisas em Cristo” (Ef 1,10). Em outras palavras, pela promoção da cultura da misericórdia, somos guiados, por Cristo, no caminho da paz.

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