Editorial

Verdadeira liberdade

Quando, no Antigo Testamento, o profeta Jonas é liberto por Deus das entranhas da baleia, o Senhor lhe ordena: “Levanta-te, vai a Nínive, a grande cidade, e anuncia-lhe a mensagem que eu te disser” (Jn 3,2). A mensagem era simples: em 40 dias, Nínive seria destruída. As palavras do Profeta foram ouvidas pelo povo e pelo próprio rei, que trocou suas roupas luxuosas por panos de saco, sentou-se sobre as cinzas e declarou: “Homens e animais, gado graúdo e miúdo, não provarão nada! Eles não pastarão e não beberão água. Cobrir-se-ão de panos de saco, invocarão a Deus com vigor e se converterá cada qual de seu caminho perverso e da violência que está em suas mãos” (Jn 3,7-8).

Durante 40 dias, os ninivitas jejuaram e fizeram penitência em busca da conversão e, por meio dela, da misericórdia de Deus. E funcionou! Deus olhou para Nínive com olhos de amor, viu “suas obras: que eles se converteram de seu caminho perverso” (Jn 3,10) e decidiu poupá-los da destruição.

Assim como os habitantes de Nínive, todos os católicos, durante a Quaresma, são convidados a praticar a penitência – não por algum tipo de gosto pelo sofrimento, mas por amor a Deus e necessidade de conversão. Por meio das práticas penitenciais, como o jejum, o cristão percebe a própria fraqueza e a própria fragilidade, e, ao fazer isso, converte-se mais e mais – o que, por sua vez, conduz-lhe à graça de um arrependimento cada vez mais profundo e sincero de seus pecados.

Outro fruto que pode ser colhido da prática do jejum é a liberdade. A ideia pode causar algum estranhamento – “como posso ser livre privando-me de algumas coisas de que gosto?” –, mas este estranhamento vem de uma compreensão mundana do sentido da liberdade, nascida do pecado original. Heráclito, um filósofo grego, dizia que se a felicidade estivesse em atender aos desejos do corpo, seria correto dizer que os bois são felizes enquanto pastam – mas não são. Os bois pastam porque não têm escolha, porque são reféns dos apetites da carne e incapazes de verdadeira liberdade.

Eis a liberdade que vem da penitência: a liberdade de dizer “não”, de não se satisfazer com a “felicidade dos ruminantes”, como disse Heráclito, mas de buscar o pleno exercício de sua humanidade, feita em imagem e semelhança de Deus; criada “por Cristo, com Cristo, em Cristo” – e para Cristo.

A penitência voluntária, além de um ato de humildade de quem se sabe pecador e, por isso, busca a conversão, é também um ato livre por meio do qual nos unimos aos sofrimentos de Jesus Cristo na cruz. Como prática ascética, é um exercício que impacta a vontade humana, tornando-a forte e robusta no combate às paixões desordenadas: criando o costume de negar-se em pequenas coisas, o cristão torna-se capaz de resistir às grandes tentações.

No 2º Domingo da Quaresma, a segunda leitura trouxe um trecho da Carta aos Filipenses: “Há muitos por aí que se comportam como inimigos da cruz de Cristo. O fim deles é a perdição, o deus deles é o estômago, a glória deles está no que é vergonhoso e só pensam nas coisas terrenas. Nós, porém, somos cidadãos do céu. De lá, aguardamos o nosso Salvador, o Senhor Jesus Cristo.” (Fl 3,18-20). Assim como Cristo derrotou a morte e conquistou a liberdade para seu povo por meio da cruz, também é dever e privilégio de todo católico lutar, todos os dias, para afastar-se do deus ventre, converter-se e conquistar a verdadeira liberdade – e isso só é possível por meio da penitência e da cruz.

 

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