Espiritualidade

A decisão de Salomão

Para refletir sobre o valor da vida e a discussão em torno do aborto, vale a pena ler um pequeno trecho do primeiro livro de Reis, no capítulo terceiro (vv. 24-27), que diz: “E mandou trazer uma espada. Quando lhe apresentaram a espada, o rei declarou: ‘Cortai o menino vivo em dois, e dai metade a uma e metade à outra’. A mulher cujo filho estava vivo sentiu nas entranhas tal compaixão por seu filho que disse ao rei: ‘Por favor, senhor, dai a ela o menino vivo. Não o mateis!’ A outra, ao contrário, dizia: ‘Não será nem teu, nem meu. Podeis cortá-lo’. O rei respondeu: ‘Dai o menino vivo àquela primeira, e não o mateis. Essa é sua mãe’.” 

O contexto que envolve a decisão de Salomão não é muito simples, porque existem aspectos morais, éticos, sociais, religiosos e humanos, como a questão do aborto. Na pessoa do rei figura a imagem de um tribunal, que foi procurado por duas mulheres em disputa: as duas deram à luz seus filhos, mas depois de algum tempo o filho de uma delas morreu e agora as duas dizem ser a mãe da criança que está viva. O texto apresenta as duas mulheres como prostitutas, e não fala nada sobre a forma como as crianças foram concebidas. Diante de tudo isso, o rei deve decidir, com base no testemunho delas, quem é a mãe de verdade. 

Para solucionar a demanda, o rei determinou que se trouxesse uma espada, e que a criança fosse repartida ao meio. Dessa forma, esperava agradar às duas mulheres, dando a cada uma delas metade da criança. A solução apresentada pode parecer desconcertante e violenta, mas foi extremamente prática e objetiva, não considerando nada além da vontade das duas mulheres. 

O acontecimento seguinte é ainda mais surpreendente, porque uma delas preferiu abrir mão da parte que lhe seria dada, para que a criança ficasse com vida e, consequentemente, fosse entregue à outra mulher. Revendo a sua decisão, o rei mandou entregar a criança àquela que escolheu a vida e rejeitou a opção que levaria à morte. Espada e compaixão são dois elementos opostos, e a verdade acompanha apenas um deles. A decisão final do rei foi motivada pelas “entranhas de compaixão”, porque nisso estava a verdade. 

Mais do que um sentimento, a compaixão é um compromisso com a vida que nasce nas entranhas e está profundamente ligado à natureza humana. Se alguém perde a compaixão, perde também a sua humanidade, e por isso a vida ou a morte já não tem mais uma distinção, tudo o que interessa é satisfazer a própria vontade. Tomada por esse compromisso, a mulher que abriu mão da sua parte agiu assim porque não podia suportar, em sua consciência, a morte da criança. Da outra parte, a mulher que insistiu na divisão da criança e, portanto, na morte, demonstrou uma total obstinação em satisfazer a sua vontade, confirmando um verdadeiro fanatismo cego e imoral. 

O texto do livro de Reis apresenta ainda uma ideia complementar ao caráter do rei Salomão, dizendo que todo o povo de Israel viu na atitude do rei um sinal da justiça de Deus. O povo reconheceu a humanidade do rei. A justiça foi feita pela misericórdia e não pela espada, e essa é a verdadeira sabedoria que põe em relevo a vida, sobretudo dos fracos e dos que não podem falar por si mesmos. A decisão do rei revelou a sua relação com Deus, autor e princípio da vida, porque não se deixou conduzir por motivações humanas e egoístas.

Em torno da questão do aborto também se fala em direito e liberdade, mas é preciso perguntar qual o significado profundo dessas duas palavras. Sabemos que liberdade não é simplesmente fazer aquilo que queremos, porque existem limites que envolvem outras pessoas, e por esse caminho se chega aos direitos e deveres de cada um. A liberdade é uma força de crescimento e de amadurecimento que busca a verdade, e que só pode ser plenamente atingida em Deus. Quando uma pessoa compreende isso, ela é livre para decidir e suas decisões vão buscar sempre a vida. No texto bíblico, a mulher que escolheu a vida da criança exerceu a sua plena liberdade, demonstrando suas entranhas de misericórdia. Ninguém se torna mais livre quando aceita, defende ou propaga a morte; quem age assim perde a sua humanidade e também não pode sustentar o nome de cristão. Que tipo de povo somos e que sociedade queremos construir?

 

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