Bioética e defesa da vida

O que é o “Eu Humano”?

A defesa da vida humana, pressuposto necessário da bioética, parte do princípio de que essa vida é dotada de dignidade. Mas de onde provém essa dignidade? Seria ela meramente formalística, engendrada pela vontade ou pelo raciocínio humano, ou teria algum substrato ontológico, real? Para isso, é necessário investigar o que é propriamente o ser humano.

Nessa investigação, a proposta inicial é proceder à análise dos sentidos que normalmente se atribuem à palavra “eu”, em vista de encontrar seu substrato permanente e contínuo por baixo deles. Por fim, a observação das experiências de morte clínica irá fornecer uma das principais chaves científicas para a confirmação dessa forma substancial da identidade humana.

Há diversos modos de se utilizar o termo “eu”, tais como o “eu” presencial (o indivíduo aqui e agora); ou o “eu social” (o individuo em suas diversas relações). Neste artigo iremos considerar o “eu” em sentido biográfico ou autobiográfico”. Esse sentido transparece nas situações em que a pessoa conta sua história para si mesma ou para os outros. Baseia-se, portanto, na recordação ou memória de fatos e se constitui de formas narrativas construídas a partir do material de que o indivíduo dispõe. Esse significado do termo “eu” revela algo bem mais estável e contínuo; porém, o elemento de esquecimento e o fator de seleção que a mente faz em relação a dados que, naquele momento de sua vida, parecem mais relevantes, faz com que haja descontinuidades também no “eu biográfico”. Por exemplo: o fato de que as pessoas não se recordem do período em que estavam no ventre materno e dos seus primeiros anos de vida ou de fatos a que não atribuem importância não significa que elas não passaram por esses estágios ou acontecimentos.

Percebe-se, desse modo, que tudo aquilo a que se atribui a palavra “eu” tem referência a algo descontínuo, escandido, fragmentário e passível de modificação no decurso do tempo. Porém, todos sabem algo que é completamente evidente e que pode ser expresso nos seguintes termos: “Eu sempre fui eu mesmo e nunca deixei de ser por um único momento.” A cada dia que acordamos, sabemos que somos nós mesmos e que essa identidade permanece por baixo de todas as mudanças do “eu presencial”, “social” ou “biográfico”.

A pergunta que cabe a partir dessa constatação é a seguinte: De onde surge esse senso de continuidade no que se refere à identidade do “eu”?

David Hume, filósofo empirista, afirmava que as únicas coisas que podemos conhecer com certeza são dadas pelas experiências fragmentárias. Notamos sentimentos, pensamentos, percepções, mas nunca um “eu” que esteja por baixo dessas experiências; logo, o que chamamos “eu” seria mero feixe de percepções transitórias, não uma substância real. Porém, as indagações que surgem naturalmente são: Quem pode dizer que tem essas percepções, sentimentos e pensamentos? Como um “feixe” pode adquirir um senso de continuidade de sua própria identidade? Não há resposta satisfatória para elas seguindo essa linha de raciocínio.

Há os que afirmam que ele nasce de uma imposição ou influência social ou cultural. Porém, uma imposição desse tipo pressuporia que os que compõem a sociedade e causam essa influência tivessem um “eu” real, enquanto os que a sofrem não o tivessem. Além disso, essa imposição teria que ser contínua, não podendo se interromper em momento algum, pois se isso ocorresse, a identidade se perderia automaticamente.

Em parcela da tradição psicanalítica, o “eu” é interpretado como uma construção realizada sobre o inconsciente. No entanto, a existência ontológica de um “eu” é a condição necessária para que qualquer pessoa construa algo. Essa construção, portanto, será sempre uma imagem do “eu”.

Pode-se perguntar se o corpo seria esse fator de continuidade e permanência unificada do “eu”. Sob determinado aspecto, a resposta é negativa, pois em um período de menos de dez anos, todas as células do corpo de um indivíduo se modificam – as antigas morrem para que nasçam novas.

A estrutura da corporalidade, no entanto, permanece a mesma. As mutações, dessa forma, ocorreriam a partir de um mesmo corpo material, o qual não se modifica em si mesmo.

Essa matéria da qual o indivíduo se constitui, no entanto, é dotado de uma forma, a forma que o torna humano, com os fatores distintivos dos outros entes, dentre os quais, a capacidade de se reconhecer enquanto individualidade permanente e contínua, mesmo no decurso de intensas mutações.

A visão materialista se assenta na hipótese de que a matéria da qual o homem é constituído encontra fundamento em si mesma e que é a evolução do cérebro humano que permite essa especificidade da identificação consigo mesmo.

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