Opinião

O coração materno de Deus

Maria representa uma figura central na trajetória histórica da Igreja. Primeiro, com seu “sim” ao chamado de Deus para ser a mãe do Salvador. Uma resposta de fé que irá iluminar o caminho de inúmeras pessoas ao longo dos tempos. O refrão “Eis aqui a serva do Senhor” haverá de se tornar, ao mesmo tempo, obediência ao plano de Deus e antecipação do sacerdócio instituído por Jesus como serviço e não como poder.

Maria converte-se numa estrela que, nas noites mais escuras, brilha e nos orienta. Depois, aparece como a primeira discípula disposta a acompanhar o Filho até o pé da cruz, de forma aberta ou oculta. Primeira discípula que, contemporaneamente, havia sido a primeira catequista do Menino que “crescia em estatura e sabedoria”. Ao lado desse grandioso e sublime mistério da Encarnação, a Mãe “tudo guardava e meditava em seu coração”. Guardar e meditar, dois verbos que ajudam a reler a história com o olhar da fé, encontrando um sentido mais profundo para a vida.

Após presenciar a Paixão, Morte e Ressurreição do Filho, tendo “a alma transpassada por uma espada”,a Mãe compõe o pequeno grupo dos que se abrem à irrupção do Espírito Santo. Irrupção em que a epifania de Deus não se restringe à luz, mas se reveste de “línguas de fogo”; não se restringe a uma brisa suave, mas sopra como “vento forte”; não se restringe ao silêncio, mas deixa ouvir um “grande barulho”. Fogo, vento e barulho – para sacudir o núcleo da Igreja ainda cabisbaixo pela experiência da cruz. E, assim, na linguagem do Documento de Aparecida, “os discípulos atemorizados convertem-se em missionários ardorosos”.

A partir daí, Maria, da mesma forma que havia seguido os passos do Filho, jamais deixará de seguir os passos da comunidade eclesial por todo o mundo. Desde as primeiras comunidades cristãs até os dias atuais, torna-se uma referência sem igual, seja nos documentos da Doutrina Social da Igreja, seja na força e persistência da devoção popular. De ambas, passa a receber as denominações mais diversas e os adjetivos mais variados, o que revela uma maneira de traduzir em cada cultura a misericórdia de Deus por meio do coração materno.

Coração materno que ama a todos os seres humanos, mas manifesta um cuidado particular a quem, por distintas motivações, encontra-se mais vulnerável, indefeso, pecador, excluído ou necessitado. Daí suas aparições mais reconhecidas. No México, a Virgem de Guadalupe aparece ao índio Juan Diego, filho de um povo dizimado pelos conquistadores (1531). No Brasil, Nossa Senhora Aparecida aparece com cor enegrecida, no auge do sistema escravagista, a três humildes pescadores (1717). Na França, Nossa Senhora de Lourdes aparece à menina Bernardette Soubirous, filha de pobres camponeses (1858). Em Portugal, Nossa Senhora de Fátima aparece a três pequenos pastores, filhos de agricultores (1917).

Em todos esses casos, o coração amoroso e compassivo da Mãe, expressão viva da misericórdia da Santíssima Trindade, vem chamar a atenção da Igreja e da sociedade para situações concretas e extremas de precariedade, exclusão social, submissão e exploração, seja do ponto de vista social, econômico, político e cultural, seja do ponto de vista espiritual. Coração de Maria – pátria de todos os peregrinos!

Padre Alfredo José Gonçalves, CS, é teólogo e pertence à Congregação dos Missionários de São Carlos (Scalabrinianos).

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