Fé e Cidadania

Irmãs gêmeas

Há exatos 130 anos, em 1887, o Bem-aventurado Dom J. B. Scalabrini, bispo de Piacenza, norte da Itália, fundava a Congregação dos Missionários de São Carlos (Scalabrinianos). Quatro anos depois, em 1891, o então Papa Leão XIII publicava a Carta Encíclica Rerum Novarum, documento inaugural da Doutrina Social da Igreja. E outros quatro anos depois, em 1895, o Bem-aventurado Dom Scalabrini, juntamente com a Bem-aventurada Madre Assunta e seu irmão, o servo de Deus Pwe. José Marchetti, fundavam a Congregação das Irmãs Missionárias de São Carlos (Scalabrinianas).

Essas três datas – 1887, 1891 e 1895 – fazem parte de um grande despertar da Igreja para com a condição socioecônomica e política das pessoas. Estamos no final do século XIX, século do movimento, segundo alguns historiadores. Movimento de pessoas e de novas máquinas, em pleno auge da Revolução Industrial. Esta, com efeito, traz avanços tecnológicos e revoluciona a visão da própria existência. Mas, também, abre feridas, desloca multidões e, numa grande onda de urbanização, provoca bolsões de pobreza nas cidades. Daí o nascimento de várias Congregações de caráter apostólico, sobretudo na segunda metade do século. 

Juntando as figuras do Papa Leão XIII e do Bem-aventurado J. B. Scalabrini, constata-se algo que é muito mais do que uma mera coincidência. Ao novo despertar da Igreja para com a “questão social”, tema da Rerum Novarum, corresponde o despertar de Dom Scalabrini para com os emigrantes que, em massa, deixavam a Europa. Sensibilidade em dupla dimensão: enquanto o Papa se preocupa com a condição dos operários nas fábricas emergentes, o bispo de Piacenza solidariza-se com aqueles que sequer conseguiam emprego em seus países. Por isso, são obrigados a cruzar os mares em busca de novas oportunidades nas Américas. De 1820 a 1920, mais de 60 milhões de pessoas saem da Europa. 

Em outras palavras, a intuição de Dom Scalabrini pela acolhida e solicitude para com os migrantes e prófugos nasce no interior da nova solicitudade pastoral da Igreja diante da condição concreta em que viviam os trabalhadores e trabalhadoras, devido às turbulências da Revolução Industrial. Disso resulta que a precupação sistemática da Igreja sobre a “doutrina social”, por um lado, e aquilo que se poderia chamar de “Pastoral dos migrantes”, por outro, são irmãs gêmeas. 

São tempos que se abrem aos novos desafios da sociedade moderna, preanunciando o Concílio Vaticano II. Hoje, porém, passados 130 anos, as migrações tornaram-se mais intensas, mais complexas e mais diversificadas. Novos rostos passam a fazer parte dos fluxos migratórios. O fenômeno envolve atualmente quase todos os países do planeta, como lugares de origem, lugares de destino ou lugares de passagem – quando não os três ao mesmo tempo. A ONU estima em mais de 230 milhões o número de pessoas que vivem e trabalham fora do país em que nasceram, e em cerca de 25 milhões o número de refugiados. 

Daí a insistência do Papa Francisco para com a abertura do coração, das portas e das fronteiras aos migrantes, prófugos e refugiados. “Construir pontes e não muros”, repete o pontífice diante das pessoas, das nações e dos meios de comunicação social. Ao por-se a caminho, os migrantes fazem marchar a história e a Igreja. Interpelam-nos a sair fora de si mesmos, de casa ou da sacristia. Através deles, os profetas itinerantes de Nazaré, nos chama igualmente ao caminho de tornar-se discípulos-missionários no universo dos migrantes, levando-lhes “o sorriso da pátria e o conforto da fé”, como lembrava Scalabrini.

 

As opiniões da seção “Fé e Cidadania” são de responsabilidade do autor e não refletem, necessariamente, os posicionamentos editoriais do O SÃO PAULO.
 

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