Opinião

Fome e fome de Justiça

“No mundo são produzidos alimentos mais do que suficientes para todos; contudo, 815 milhões de pessoas passam fome.” É o que consta no relatório “Quanto falta para alcançar a #FomeZero? O estado da seguridade alimentar e da nutrição no mundo 2017”, da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). Na última década, a fome global estava em declínio; no último ano, porém, ela voltou a crescer, afligindo especialmente as crianças e comprometendo para sempre a vida futura de toda uma geração. É um enorme desafio alcançar a meta de zerar a fome no mundo até 2030.

Dentre suas causas, o relatório aponta os conflitos violentos, as mudanças climáticas e a recessão econômica global. A FAO constata que o número de conflitos violentos – não somente guerras entre Estados, mas também guerras civis, grupos armados etc. – aumentou dramaticamente (cerca de 125% desde 2010). As secas e as enchentes, agravadas pelas mudanças climáticas, refletem diretamente nas colheitas, e a recessão econômica tem impacto nas exportações de commodities, além das receitas fiscais e do aumento do preço dos alimentos, restringindo o acesso a estes pelas populações empobrecidas.

O relatório cita também o impacto das populações deslocadas (refugiados e migrantes) no cenário da fome. Um em cada 113 habitantes do planeta foi forçado a abandonar a própria terra.

Essa crise humanitária chama a atenção para dois aspectos. Em primeiro lugar, não se trata de meros números estatísticos, mas de pessoas, filhas de Deus, privadas de condições mínimas de subsistência e lesadas em sua dignidade. Também não se trata de meras fatalidades, mas de consequência de ações humanas, de escolhas de governos e de sociedades (das quais em certa medida compartimos). Consequências que se estendem ao planeta inteiro (um exemplo é a questão dos refugiados). 

Benjamin Barber, estudioso norte-americano da interdependência dos países, recentemente falecido, afirmou que “interdependência significa que nós podemos criar ou um mundo seguro para todos ou, então, um mundo que não é seguro para ninguém”, acrescentando: “Uma vez que os desafios que devemos enfrentar hoje são globais, também as respostas encontradas devem ser tais”.

O ponto é que tipo de visão global temos: a supostamente universalista da cultura ocidental-europeia? A da mundialização econômica neoliberal? A dos interesses estratégicos geopolíticos? 

Chiara Lubich, a fundadora do Movimento dos Focolares, propõe: “É a fraternidade [que ela entende a partir do Evangelho] que pode dar hoje novos conteúdos à realidade da interdependência. É a fraternidade que pode fazer que floresçam projetos e ações no complexo tecido político, econômico, cultural e social de nosso mundo… A profunda necessidade de paz que a humanidade hoje exprime diz que a fraternidade não é apenas um valor, não é apenas um método, mas é um paradigma global de desenvolvimento político…” 

Essas questões todas ensejam uma atualização da obra de misericórdia de dar de comer a quem tem fome e da bem-aventurança da fome de justiça. Há muito por fazer com urgência – os “povos da fome” não podem esperar até que haja paz: das escolhas de estilo de vida conscientes aos gestos de solidariedade, do engajamento no Terceiro Setor à participação na elaboração de políticas públicas, da formação de opinião pública à escolha dos governantes com suas visões de mundo. Consciência e ações em nível local e planetário… 

A crise humanitária da fome – em última análise, tradução da crise de humanidade de nossos tempos – não é questão apenas dos “grandes da Terra”; também nós, “normais cidadãos”, temos nossa tarefa a cumprir.

Arte: Sergio Ricciuto Conte
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