Comportamento

E depois do carnaval...

O carnaval, historicamente, nasceu na Antiguidade. A Igreja Católica, há séculos, enquadrou essa festa pagã logo antes do período de jejum e penitência que se prolonga até a Páscoa, em que não se come carne e se faz penitência. Hoje, o carnaval passou a ser uma festa fechada em si mesmo. Comemora-se o carnaval, porque... é carnaval. Sempre que se faz uma festa, ela é vinculada a um motivo: aniversário, nascimento, comemoração de datas históricas, eventos com periodicidade, colheitas... Mas o carnaval desvinculou-se de qualquer tema e passou a bastar-se em si mesmo. De repente, surgem os foliões, cantam, comem e bebem, não por qualquer outro motivo que não seja o próprio carnaval.

De fato, o comportamento carnavalesco assumiu em alguns lugares manifestações que não só esquecem os aspectos do jejum e penitência a seguir, como se tornou uma manifestação descontrolada de toda sorte de fantasias. Sem exagero, descontadas as exceções, os encontros carnavalescos passaram a ser um período de “vale tudo”, com perda da responsabilidade que é requerida quando se reúne um número incontável de pessoas inebriadas, acompanhadas de ritmos musicais alucinantes. Pode parecer muito crítico e até puritano para alguns, mas isso é o que assistimos em muitas praças. Para não entrar em maiores detalhes, basta citar que uma das recomendações mais intensamente alardeadas pela mídia é que ninguém saia sem preservativos. Isso demonstra o que se espera que aconteça nos relacionamentos, muitas vezes de estranhos, em que nem sequer o nome dos envolvidos é conhecido pelo outro, nessa festa em que depois “tudo volta ao normal, hoje é carnaval”, como diz o samba-enredo. O fato é que “nem tudo volta ao normal” algumas vezes...

Interessante que, ao mesmo tempo em que há tanta preocupação com os preservativos e DSTs (doenças sexualmente transmissíveis), pouco se fala dos limites a serem mantidos nas vestimentas, nas provocações sensuais, na bebedeira.... Facilmente chegam as reclamações por desrespeito como atitudes de preconceitos (até em inocentes marchinhas dos anos 40), e mesmo de abusos sexuais, por não dizer de estupro. Em certos ambientes, o comportamento fica muito próximo de pedir que pulem na piscina, mas que tomem cuidado para não se molhar. Mas o carnaval acaba, não para todos, que continuam comemorando sem data de validade. É preciso olhar pelos dias que se seguem.

Já na quarta-feira, as cinzas, esquecidas por muitos, lembram-nos da necessidade de nos colocarmos como penitentes. É bom parar para pensar como estamos olhando para os próximos 40 dias que se seguirão. Não são poucos os que mal saíram das avenidas do samba e já estão pensando nos temas e fantasias para o carnaval do ano que vem. Vivem pelo carnaval. Incrível, preparam-se por um ano, para dançar pouco mais de quatro dias. Não cabe agora discussão. Cada um dá à vida o sentido que acredita ser o melhor... Mas fica aqui um convite a uma outra perspectiva. Fechadas as passarelas, onde colocaremos o nosso sentido? Jejum atualmente parece estar vinculado a grevistas revoltados. Penitência já nem sequer combina com todo conforto cada vez mais exigido pelo mundo do controle remoto pelo celular.

Vale a pena lembrar que o jejum é recomendação médica em alguns casos quando é preciso fazer descansar o corpo de suas impurezas. Ganha-se um equilíbrio diante dos abusos alimentares. O jejum não é somente gastronômico, mas também privar-se por algum tempo de algo desejado, e lícito, e com isso fortalecer a vontade contra o prazer ordenado. Nessa linha, acompanha a penitência, que não é castigo imposto, mas opção por privar-se do mais fácil, do mais opulento, das vaidades; preparando-nos para o caminho da liberdade pelas escolhas virtuosas. Pela penitência, ajuda-se a si e aos demais, em atitude de solidariedade pelos que têm dificuldades em cumpri-la. A penitência, que não pode ser reconhecida como desejo insano pelo sofrimento, fortalece a vontade, ajuda no discernimento, foge dos resultados fáceis e enganosos, enxerga os valores da determinação e perseverança. Faz-nos mais livres e alegres de verdade. Não é um carnaval “vale tudo”. A escolha é sempre individual. Faça a sua.

Dr. Valdir Reginato é médico de família. E-mail: vreginato@uol.com.br
 

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