Fé e Cidadania

Da esmola à Campanha da Fraternidade

Na Quaresma, a Igreja nos convida a um conjunto de práticas ascéticas que ajudam a nossa conversão. Tradicionalmente, nos são propostos a oração, o jejum e a esmola (cf. a leitura do Evangelho de Quarta-feira de Cinzas, Mt 6,1-6.16-18). Outras variantes enumeram a oração, a penitência, a caridade e a meditação da Palavra. O conteúdo último é praticamente o mesmo e inclui a consciência dos próprios pecados, a oração a Deus e o amor aos irmãos, em particular aos mais necessitados.

Dos tempos bíblicos à atualidade, a prática do amor ao próximo sofreu muitas transformações – não em sua essência, que permanece a mesma, mas em sua forma, que depende das necessidades reais de nossos irmãos e da percepção que temos da vida em sociedade. Da esmola citada no Evangelho às modernas organizações de voluntariado, muita coisa mudou, nem sempre para melhor, mas sempre a refletir as mudanças dos contextos sociais.

A primeira ação caritativa é, sem dúvida, assistencial: procura ajudar a quem precisa, sem se preocupar se o assistido irá ou não se tornar independente da assistência no futuro. Ele precisa agora, e nós que o amamos procuramos ajudá-lo agora.

É interessante notar que, ainda hoje, os principais alvos da ação caritativa da Igreja, os sem-teto, os migrantes, os presos etc., eram incorporados por Marx numa categoria chamada lumpemproletariado, que abarcava todos aqueles excluídos e marginalizados que, por sua debilidade social, não tinham um papel político relevante na transformação do sistema. O cristão não se preocupa com eles por razões políticas, mas por uma exigência do amor.

Ao longo da história, contudo, a comunidade católica foi percebendo que a ação apenas assistencial, ainda que necessária em muitos casos, nem sempre era adequada. Havia aquelas pessoas para as quais era mais útil “ensinar a pescar do que dar o peixe”, para usar uma imagem muito conhecida. O amor continuava a implicar assistência, mas também formação e capacitação.

Mais tarde, percebeu-se também que, muitas vezes, as situações não eram intrínsecas às pessoas, mas dependiam de um contexto social injusto. Por mais que se fizesse trabalho assistencial, era preciso mudar as estruturas que mantinham as condições de pobreza e exclusão social. O amor agora implicava não apenas o assistencial e a formação, mas também se cruzava com o político. Cruzamento essencial, mas sem dúvida perigoso, pois a política é o terreno também das opções ideológicas e partidárias, que cegam as pessoas e dividem as comunidades.

As Campanhas da Fraternidade (CFs) se inserem nesse contexto, no qual a caridade assume aspectos assistenciais, formativos e políticos. Por isso, correspondem às práticas quaresmais normalmente associadas à esmola e à caridade.

Muitos criticam a CF por “roubar” um espaço que deveria ser reservado à ascese e à conversão pessoal, entregando-o à reflexão sociopolítica. Isso seria verdade se ela se tornasse a única prática quaresmal – e não viesse acompanhada por momentos de oração, reflexão e penitência.

Percebendo esse risco, a CNBB vem indicando há tempos que o trabalho da CF seja iniciado na Quaresma, mas continue ao longo do ano – evitando o que poderia se tornar um desequilíbrio nas práticas ascéticas dos cristãos.

A conversão cristã não é apenas íntima e sentimental. É sempre um acontecimento global, que mobiliza todos os nossos afetos e toda a nossa inteligência. Essa é a justa perspectiva para viver as Campanhas da Fraternidade.

Francisco Borba Ribeiro Neto, sociólogo e biólogo, é coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP
 

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