Editorial

Cristianismo e direitos humanos

No dia 10 de dezembro, a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU completa 70 anos. O texto, concebido para atender à pluralidade cultural das Nações Unidas e à concepção moderna de Estado laico, não se reporta diretamente a nenhum princípio religioso – embora sua história esteja inegavelmente associada ao Ocidente judaico-cristão. 

Os conceitos de “direitos humanos” e  da “dignidade universal de todos os seres humanos” não aparecem em nenhuma outra sociedade humana com a força que apareceram na nossa. Grandes santos e pensadores cristãos, desde os primeiros séculos, defenderam a justiça, os pobres e os fracos, fornecendo os embriões do que a modernidade definiu como direitos humanos. 

O primeiro documento oficial a declarar, nos termos de sua época, que todos os seres humanos têm a mesma dignidade e os mesmos direitos foi a Bula Sublimis Deus, do Papa Paulo III (1537), e a própria Declaração da ONU teve grande influência do filósofo católico Jacques Maritain.

Existe não apenas uma coincidência acidental entre fé cristã e reconhecimento dos direitos humanos. A dignidade intrínseca à pessoa humana, que não depende de nenhuma condição ou capacidade particular, não é uma construção ou fruto de um contrato social arbitrário. Tampouco é uma obviedade com a qual todos se deparam obrigatoriamente na vida. É uma evidência, uma característica inerente a nosso ser, mas que precisa ser “descoberta” por cada um de nós ao longo de nossa vida. Depende, portanto, de uma cultura, dos ambientes familiar e social capazes de orientar o desenvolvimento da pessoa para essa descoberta. 

Descobrir-se amado é a experiência fundamental que leva à descoberta da própria dignidade e dos próprios direitos. Quanto mais alguém se percebe amado gratuitamente, mais facilmente descobre a própria dignidade. Quem não faz essa experiência ou associa o amor recebido a certos comportamentos (“amam-me porque sou bom”) ou atributos (“amam- -me porque tenho poder, sou bonito”) não consegue descobrir a própria dignidade natural ou a percebe de modo distorcido e individualista. 

Nossa civilização, mesmo que não nos lembremos disso hoje em dia, foi construída sobre o maior anúncio de amor gratuito da história: em Cristo, o próprio Deus se sacrificou pelo bem de sua criatura – não pelo bem de uma espécie humana genérica, mas pelo bem de cada um de nós em particular. Não há, na história, anúncio de uma dignidade maior e mais gratuita do que a ovelha perdida, que foi buscada pelo seu pastor em detrimento de todo o rebanho (Mt 18,10-14).

Essa experiência de ser amado, que se repete em cada família bem constituída, é a raiz da percepção da dignidade natural do ser humano e dos direitos humanos. Se o amor, porém, não é adequadamente recebido e compreendido, também a dignidade e os direitos da pessoa podem se extraviar.

Os direitos de uns não podem ser exercidos se outros não praticarem os próprios deveres. Todo direito humano implica um dever social. Nossa sociedade, contudo, quer direitos sem deveres, porque os deveres foram reduzidos a convenções sociais e não a expressões sociais do amor fraterno. 

Num contexto de crise e conflito, como o vivido por nós atualmente no Brasil, para que os direitos humanos de todos, inclusive de nós mesmos, sejam reconhecidos, cresce mais ainda o dever do amor fraterno, de olhar a dignidade inerente a cada um, antes de olharmos para sua condição ou ideologia.
 

 

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