Opinião

Como buscar o rosto de Deus?

Como buscar o rosto de Deus em meio a tanto rumor? Quão rumorosas são as ruas e praças da cidade! Rumor de motores, pneus e buzinas; de ambulâncias, carros de bombeiros e da PM, com suas sirenes; de vozes, anúncios e gritos; de máquinas, alto-falantes e música; de crianças nas escolas e ao redor delas. Como buscar o rosto de Deus em meio a tanta velocidade? A pressa se torna imperativa e inconsciente! Tudo o que se move, só o faz correndo, olhando o relógio: pessoas e veículos, vendedores e compradores, empresários e funcionários. Como buscar o rosto de Deus em meio a tantos e múltiplos produtos que, expostos nas lojas iluminadas, fascinam e seduzem o consumidor? Quanto se produz, se vende e se compra no espaço urbano! Roupa, calçados, bolsas, brinquedos, televisores eletrodomésticos, celulares, móveis, livros e revistas, material de escritório, alimento, bebida, café, artefatos e bugigangas de toda espécie e gênero.

Como buscar o rosto de Deus em meio a tamanho medo e desconfiança? Tudo e todos, nessa selva de pedra, parecem representar uma contínua ameaça. Inimigos recíprocos por toda parte! A multidão marcha veloz, flui em todas as direções, às vezes forma correntes de gente. Rios humanos que desembocam em praças, terminais rodoviários, estações metroviárias, centros comerciais. Mas cada um procura esquivar-se do outro e, com grande cuidado, esquivar o entrechoque dos braços, dos pacotes, especialmente dos corpos. Esquivar, ignorar, desconhecer, fazer de conta que não se vê – eis a regra número um de quem cruza apressadamente o centro urbano. De forma particular, é preciso evitar um cruzamento imprevisto de um olhar. O risco de um olhar à espreita no corre-corre da selva de pedra: verdadeira invasão de privacidade! O olhar interpela e interroga, desnuda e penetra, rompe e invade as linhas de defesa. Pode ser letal! Por vezes os olhos se cruzam dentro do ônibus, do trem, da estação de metrô, de qualquer consultório... Encontros ignotos e incógnitos, e que para sempre se convertem em desencontros.

Como buscar o rosto de Deus em meio ao turbilhão irrequieto e buliçoso da metrópole? Em primeiro lugar, o mesmo olhar que se teme e se procura esquivar, ao invés de uma invasão imprevista, pode transfigurar-se em uma nova luz. Um raio de sol que ilumina a vida, o ambiente, o passado-presente-futuro... Tudo! Basta que, em lugar de um desencontro, este possa reconverter-se em um encontro. Um encontro fortuito, ocasonal e inesperado, em vez de perigo a ser evitado, pode abrir caminho para uma esfera diversa daquela em que nos movemos. Escancara-se uma janela para o céu azul, para o ar livre, para a aurora de um novo dia. A opacidade urbana, onde cada um carrega uma armadura de autodefesa, transforma-se em transparência. Uma iluminação imprevisível e uma água cristalina passam a jorrar de fontes antes desconhecidas.

Mas dois impasses precisam ser superados. Primeiro, saber diminuir a marcha, saber parar. “Vamos sozinhos a um lugar deserto, para que vocês possam repousar um pouco”, diz Jesus a seus discípulos. Estavam pressionados pela multidão. “Não tinham tempo nem para comer” (Mc 6,31). A multidão costuma exigir sempre mais – pão, fatos, milagres, sensações, espetáculo. Daí a necessidade de tempo para parar, refugiar-se em um lugar à parte, interrogar a si próprio sobre a existência, o sentido da vida. Quem dirige perguntas a si mesmo e busca novas respostas, não teme o olhar alheio. Nenhum olhar poderá converter-se em ameaça, pois, tendo aprendido a olhar-se no espelho de si mesmo, pode ver-se através do espelho do outro.

Mas não bastam os dois espelhos. O segundo impasse a ser superado é o de saber calar. Numa palavra, parar e silenciar  para escutar. Momento para ouvir não apenas o outro que, dia após dia cruza o meu caminho, vive sob o mesmo teto, ou trabalha comigo, mas, de modo especial, parar e silenciar para escutar o totalmente Outro. O Transcendente, mais do que cruzar meus passos, habita a minha alma, habita o interior de todo ser humano, habita a obra da humanidade. “Deus habita esta cidade” (Sl 47,9). Mas como buscá-Lo, se somos incapazes de diminuir o ritmo das atividades? Como escutá-Lo no silêncio da oração, da meditação ou da contemplação, se somos incapazes de suportar o silêncio?  Na oração silenciosa, três espelhos se encontram, se interpelam e se fundem, refletindo simultaneamente a presença do Mistério, os temores e esperanças do próximo e os anseios de nossa própria alma, tantas vezes solitária e ressequida.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, teólogo, é o atual Vigário Geral da Congregação dos Missionários de São Carlos (scalabrinianos). Realizou trabalhos pastorais em favelas, cortiços e no interior do Estado com os migrantes cortadores de cana. Foi diretor do CEM-Centro de Estudos Migratórios de São Paulo, assessor do Setor Pastorais Sociais da CNBB, Superior da Província São Paulo dos Padres Scalabrinianos. 
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