Opinião

Brasil: a necessidade de aumentar o amor ao trabalho

Ao longo de toda a história do Brasil, há um traço instaurado pela grande dimensão e longa duração da escravidão, que é a falta de amor ao trabalho. O trabalho, no entanto, é a expressão mais viva da dignidade do ser humano. Além da aquisição de bens materiais, realiza a vocação natural e sobrenatural de cada pessoa. O Compêndio da Doutrina Social da Igreja (CDSI, 256) diz que o trabalho pertence à condição original do ser humano e precede a sua queda; não é, portanto, nem punição nem maldição; expressa o ser imagem e semelhança de Deus, que deseja construir o mundo em colaboração com o ser humano. É no ato de trabalhar que se realiza o dever de “cultivar e guardar a terra”, transmitido ao ser humano no momento da sua criação (CDSI, 255).

Por isso, também, o direito que cada ser humano tem ao trabalho faz parte do direito primordial de existir e de ser livre. É por meio do trabalho que o ser humano se realiza plenamente e faz o seu caminho de volta para Deus e o Paraíso. “Criado nEle e por meio dEle, redimido por Ele, o universo não é um amontoado casual, mas um ‘cosmo’, cuja ordem o ser humano deve descobrir, secundar e levar à plenitude (CDSI, 262) ”.

Não se pode dizer que um escravo “trabalha”, assim como não se pode dizer que na exploração de um ser humano por outro há qualquer reconhecimento da sua dignidade. Por isso, com o crescimento da consciência da dignidade inalienável de cada ser humano, a escravidão torna-se inadmissível. Ainda assim, apesar da abolição da escravatura, continuou no Brasil, em proporção significativa, outra forma de exploração do homem pelo homem: o não pagar o justo salário ao empregado, impedindo que tenha condições dignas de moradia, saúde e educação dos filhos. Essa forma de exploração está longe do que a Igreja sempre afirmou sobre a dignidade do trabalho, reconhecendo-o como única forma adequada para a construção da sociedade.

Quem explora os outros aparentemente “ganha mais” e precisa “trabalhar” menos, porém essa forma de viver também expressa uma falta de amor ao trabalho e do reconhecimento do seu valor para si próprio. Essa situação trouxe duas formas de ação social que tentaram mitigar as injustiças provocadas, entre outros fatores, pelo sistema escravocrata e suas consequências: aumentar o poder e o controle do Estado sobre os ricos e os privilegiados (com maior ou menor sucesso) e realizar políticas públicas muitas vezes assistencialistas de doação e distribuição de bens e dinheiro aos mais pobres. 

A Doutrina Social da Igreja nos ensina, ao contrário, que esses não são os caminhos melhores ou que mais valorizam a dignidade da pessoa e geram o bem comum para a sociedade (CDSI, 187 e 351). Ao contrário, afirma que todas as ações individuais ou coletivas que valorizam e facilitam o protagonismo da pessoa humana e incrementam as possibilidades de esta realizar de forma livre seus próprios talentos e vocação por meio do próprio trabalho são mais desejáveis para construir o bem comum. Estas, a nosso ver, devem ser as principais preocupações do novo governo, em conjunto com a sociedade civil: melhorar o investimento, sobretudo no Ensino Básico; aliviar a forma de tributação das pequenas e médias empresas (privilegiando estas e não as grandes empresas, como tem acontecido); e aumentar a formação para o trabalho, para dar a possibilidade de que todos tenham um emprego digno e salário condizente. Para que tudo isso aconteça, é fundamental o controle social por parte da população.

 

Ana Lydia Sawaya é professora titular de Fisiologia da Unifesp e conselheira do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.
 
 

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