Espiritualidade

A ressurreição e suas interpelações

A Palavra de Deus é fonte de ânimo e inspiração para os seguidores de Jesus Cristo e para todas as comunidades eclesiais missionárias. O ano litúrgico, organizado de maneira a meditar sistematicamente a Palavra ao longo dos meses, se encaminha para o fim. O trecho do Evangelho de Lucas proclamado nas missas do primeiro fim de semana deste mês relata um dos conflitos que Jesus enfrentou em Jerusalém, quando foi interpelado pelos saduceus acerca da ressurreição dos mortos.
Essa doutrina foi sendo gestada aos poucos no povo do Antigo Testamento pelas intervenções salvíficas do Criador em sua história. A começar pela libertação do Egito, pois o faraó havia decretado a morte de todos os israelitas. Os salmistas cantavam que Deus os livrara da morte, “tiraste do Xeol a minha alma, restituíste-me a vida, para eu não descer à cova” (Sl 30,4); que a garantia da vida estava em Deus, “a minha fortaleza e meu refúgio és Tu” (Sl 31,4); e que Dele vinha o socorro (cf. Sl 121,2). 
Por isso, os descendentes de Abraão e de Jacó nutriam grande esperança nos seus corações, sobretudo nas situações mais adversas. Foi num contexto de testemunho de fé em tempo de dura perseguição que a doutrina da ressurreição foi expressa com clareza pela primeira vez na Bíblia. Esta afirmação da vida que vence a morte está situada no contexto do martírio de sete irmãos diante da mãe, quando o último diz: “Prefiro ser morto pelos homens tendo em vista a esperança dada por Deus, que um dia nos ressuscitará” (2Mac 7,14). 
Não obstante a espiritualidade dos israelitas vivenciada ao longo de sua história ter sido enriquecida com a fé na ressurreição, os saduceus a negavam. Era um grupo composto por pessoas da classe mais abastada, com forte atuação política, econômica e espiritual na cidade de Davi. Para eles, a Palavra de Deus era restrita aos cinco primeiros livros da Bíblia (Pentateuco), e não acreditavam nos escritos proféticos. Instalados no poder e gozando do bem-estar da época, desdenhavam da crença na ressurreição anunciada por Jesus. 
Em Jerusalém, finalmente alguns saduceus tiveram a oportunidade de afrontar Jesus a respeito da vida eterna. Fizeram uso de argumentos especulativos, a partir da lei do levirato (cf. Dt 25,5-10), perguntando ao Mestre de quem seria na vida eterna uma mulher que não havia gerado filhos ao se casar com vários irmãos sucessivamente. Assim, caíam no erro de pensar a vida posterior com os modelos da existência neste chão. 
Jesus responde aos saduceus recorrendo à revelação de Deus a Moisés, no próprio Pentateuco. Toma o episódio da sarça ardente (Ex 3,6): “Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó”. Diante disso, o Mestre de Nazaré responde aos saduceus afirmando que Deus não é Deus de mortos, mas de vivos (cf. Lc 20,37-38), e dizendo que, no vivente por excelência, todos vivem, mesmo os que já passaram pela morte.
Atualmente, não há muito espaço para uma reflexão séria acerca do mistério último da vida. A descrença dos saduceus está presente em elementos que preconizam uma existência sem Deus e sem túmulos, encurtando tanto o horizonte quanto as possibilidades para a vida humana. Essa proposição tem reflexos na vida em sociedade, pois desse modo se descuida do que é justo, santo e edificador. 
A proclamação da ressurreição dos mortos por Jesus Cristo, como se vê nestes versículos de Lucas (20,37-38), é boa nova capaz de interpelar e reavivar um âmbito mais profundo da humanidade, convidando a uma abertura que extrapola o mero âmbito das exigências do ego. É um movimento que salva, pois insere a pessoa na caminhada e luta comum da humanidade, sempre em busca de respostas para suas questões mais profundas ou mais candentes. Jesus Cristo viveu dessa maneira e com uma fidelidade tal que o levou à morte na cruz, da qual Ele não teve medo, pois conhecia o Pai, fonte e garantia da vida. 
Neste tempo, faz-se necessário que os seguidores do Senhor, vivo e ressuscitado, testemunhem, com uma vida justa e empenho em prol da garantia da vida, a grande esperança que sustenta a fé cristã, a ressurreição e a vida eterna.

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