Fé e Cidadania

A igreja em chamas e a consciência da fé

Na cobertura das TVs internacionais, as imagens da catedral de Notre-Dame, na França, em chamas não pararam ao longo do dia 15 de abril. Na BBC, do Reino Unido, o correspondente em Paris comentava que a visão tinha um alcance especialmente grande porque “todo mundo já viu Notre-Dame” de perto ou em incontáveis filmes, fotos, até em desenhos animados. A cidade de Paris é reconhecível imediatamente por causa de sua catedral.

As mesmas coberturas das TVs e a da imprensa escrita em papel ou na tela davam voz a um bom número de jornalistas, historiadores, críticos de arte, pessoas comuns, que falavam repetidamente da perda de um patrimônio cultural incalculável. Pessoas entrevistadas assistindo ao incêndio falavam com pesar, algumas chorando, por verem aquele símbolo da França, com tanta história, tanta arte, tanto esforço humano, atingido daquela maneira. Os mais otimistas, tentando tirar algum consolo da desgraça, celebravam uma unidade que se teria formada entre os franceses em torno do símbolo nacional quase destruído.

Pouco se falava do que deveria ser óbvio: Notre-Dame é uma igreja. Uma igreja em operação, em uso, onde o pão se torna de novo a carne de Jesus Cristo todos os dias. Ela não é, a não ser secundariamente, um símbolo de Paris, ou da França, ou da humanidade, como atesta o título de patrimônio concedido pela ONU. Ela é, isto sim, o templo onde se realiza a presença de Deus na capital de uma França que, um dia, foi a “filha mais velha da Igreja”. Pouca gente parecia se lembrar disso.

Houve declarações do presidente Emmanuel Macron, da prefeita de Paris, Anne Hidalgo, de turistas, passantes etc. Não tendo ouvido nada do Arcebispo de Paris, Dom Michel Aupetit, visitei a página da Arquidiocese na internet. Só no Twitter da catedral, o incêndio era um tema no dia 16, pela manhã. Um dos tweets, de uma leiga integrante das obras sociais da Arquidiocese, compartilhava o texto de um padre. Um texto desconcertante, dizia o tweet.

“Essa noite não foi feita para dormir,” começa o Padre Guillaume de Menthière. “À vista de Notre-Dame em chamas, a emoção era forte demais, a tristeza por demais intensa, a oração, necessária demais.” Menthiére estivera no dia anterior, Domingo de Ramos, pregando na catedral. A mesma catedral em que, há quase 30 anos, lembra, fora ordenado. Pode-se imaginar sua extrema tristeza.

Mesmo assim, a “desolação deu lugar a um reconhecimento subjugado”, escreveu o Padre. “Pareceu-me sentir o velho Galo Gaulês acordar de seu torpor.” Para ele, “é claro que resta a infinita dor de ver essas ruínas desoladas, a irreparável perda de tantas obras de arte e o abatimento diante da tarefa colossal de reconstrução. No entanto, nesta Semana Santa, que desemboca na vitória da Páscoa, os cristãos amam dizer de novo que, de todo mal, Deus pode fazer sair um bem. De que se reerguer desse desastre é a promessa e a garantia? Essas pedras, das quais o Senhor nos dizia ainda ontem, na celebração do Domingo de Ramos, que elas gritariam se o povo se calasse, “não as ouvimos, ainda fumegantes, chamar ao sobressalto e à fé?”

Marcelo Cavallari é escritor, tradutor e jornalista especializado em assuntos internacionais. Traduziu o “Livro da Vida” sobre Santa Teresa D’Ávila, para a Companhia das Letras, e escreveu “Catolicismo”, para a editora Bella.
 

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